Parece quase obrigatório falar de tradições (culinárias ou de outra ordem qualquer) nesta época do ano. Queria fugir disso mas...
Na minha família e, suponho, na de muitos, acaba-se por repetir nas festas de natal e de fim de ano alguns rituais ou, pelo menos, algumas receitas. Numa casa marcadamente portuguesa, o bacalhau e as rabanadas sempre estiveram presentes à mesa do natal. Quando era criança e os festejos se faziam na casa de meus avós paternos, penso que o prato era preparado por minha avó, cozido com batatas ou ao forno - não tenho certeza. Minha avó, pequenina e decidida, gostava de mandar e minha mãe, para evitar atritos com a sogra, geralmente seguia suas "orientações". Mas o tempo foi passando e a mãe (que também era portuguesa) acabou por introduzir sua inovação no ritual. O calor do natal brasileiro sugeria e justificava pratos frios, então ela começou a levar para a ceia uma salada de bacalhau. A versão agradou e passou a se constituir numa nova tradição que permanece (pelo menos por enquanto). E, nos últimos anos, sou eu que tenho me incumbido de preservá-la.
Foi em Torres, na casa de amigos, que passamos a data há poucos dias atrás. Como os supermercados de praia costumam ser precários (e caros), levei da cidade uma boa peça de bacalhau salgado. Não haveria muito tempo para dessalgá-lo pois estávamos viajando na véspera da festa, então tive o cuidado de trocar várias vezes a água da vasilha conservada no refrigerador (cheguei até mesmo a me levantar no meio da noite para fazer isso!). A praia ótima, o sol, o mar, o calor e a caipirinha fizeram com que eu me ocupasse do "assunto" somente depois do almoço. Era dia 24 de dezembro e a festa começaria em poucas horas.
Iniciei o preparo cozinhando o bacalhau com bastante água, ao mesmo tempo em que, com a ajuda de minha irmã, descascava e cortava em rodelas as batatas. Depois de uns quinze ou vinte minutos de cozimento considerei que a peça (que tinha em torno de 850 gramas) estava pronta e retirei da panela. Aproveitei a água para cozinhar as batatas que, assim, iriam ganhar um tanto mais do sabor do peixe. Cuidei para que as batatas ficassem no ponto, isto é, bem firmes. Imediatamente escorri-as da água, esperei só um pouquinho e já coloquei um pouco de azeite para temperá-las. Agora tinha de achar um lugar arejado para ver se conseguia resfriá-las rapidamente. (O calor era intensíssimo!)
Desmanchei o bacalhau em lascas, cozinhei alguns ovos e depois cortei-os em fatias, cortei também algumas cebolas roxas em fatias fininhas. Juntei todos esses ingredientes mais azeitonas e azeite, é claro! A salada estava pronta. Em seguida foi para o refrigerador, aguardando o horário da festa.
Como costuma acontecer nessas reuniões em que cada grupo familiar leva alguma comida, a mesa (farta) mostrava-se um tanto heterodoxa: havia peru, farofa e frutas (como poderiam faltar num natal brasileiro?), salpicão de frango, arroz à grega, etc. etc. Com muita alegria todos se lançaram aos pratos. Provando um pouquinho daqui, um pouquinho dali, promoveram-se combinações inusitadas e, ao final, distribuiram-se elogios a todos os responsáveis.
No dia seguinte...
evidentemente havia muitas sobras - absolutamente aproveitáveis e saborosas. Não se podia desperdiçar o que havia sido feito com tanto carinho e cuidado. O almoço constituiu-se, então, na transformação ou renovação dos pratos. E aqui, na minha opinião, fica revelada outra qualidade da salada de bacalhau: colocada numa travessa refratária e levada ao forno (mais um tantinho de azeite para dar brilho e salsinha picada para dar graça) vira um prato "novo": bacalhau no forno. Fácil de fazer, fácil de transportar, fácil de transformar.