Este blog tem me trazido algumas surpresas, ou talvez apenas "iluminado" algumas situações e lembranças que estavam um pouco na sombra. A primeira delas foi perceber que meu interesse por comida e gastronomia e o prazer compartilhado ao redor da mesa não vêm de agora. Não pode ser por acaso que eu tenha encontrado entre meus guardados de viagem e fotografias da família tantos registros referentes à comida, cardápios de restaurantes, receitas, imagens das mesas de aniversário, natal, mercados... Outra agradável surpresa (se é que posso chamar de surpresa) foi me dar conta da parceria de amigos e amigas que volta e meia dão mostras de acompanhar e partilhar desse interesse.
Nessa "onda" ganhei de presente alguns livros. Dois deles, muito atuais e atraentes, já andei comentando (Ao gosto de Veneza e Receber com charme). Outro é mais antigo, ou melhor, bem antigo. Trata-se de Um alfabeto para gourmets, de MFK Fisher, publicado originalmente em inglês em 1949. O exemplar que ganhei é a tradução de Celso Nogueira para a Companhia das Letras de 1996.
Eu nada sabia sobre a autora ou sobre o livro, o que, evidentemente, revela meu amadorismo no campo da gastronomia pois essa é uma autora consagrada e muitíssimo respeitada na área. Mary Francis Kennedy (o Fisher vem do primeiro casamento) assinava apenas com "as iniciais para disfarçar sua condição de mulher quando somente homens escreviam sobre comida", conta Nina Horta que escreve a orelha deste livro. Reconhecida como notável escritora, dela alguns disseram que desperdiçava seu talento escrevendo sobre um tema tão prosaico, a comida. Mary Francis viveu entre 1908 e 1992.
Apreciei o livro devagarinho, lendo uma crônica por noite, já na cama, como quem lambisca uma comidinha gostosa às escondidas. Os capítulos estão organizados pelas letras do alfabeto que servem como uma espécie de starter para o texto (por exemplo, A de Antes só; C de cautela, F de Família, P de Petits pois, R de Romance). Por esses títulos já dá para notar que as crônicas não se restrigem à comida ou a receitas num sentido estrito, mas são feitas em torno da comida, envolvem memórias afetivas e amorosas, lembranças de viagens, experiências gastronômicas e pessoais.
Inúmeras vezes larguei o livro sobre as cobertas e "viajei" em minhas próprias memórias, sai dali para outras paragens. Aprendi "um monte de coisas", sobre muitos temas. Por preguiça tomei poucas notas. Valia a pena ter registrado mais (por exemplo, seus comentários sobre proporções e gosto entre tantos outros). As receitas propriamente ditas me pareceram muito complicadas para executar. São exemplares de um outro tempo da gastonomia, usualmente muito trabalhosas, às vezes fazendo uso de ingredientes pouco acessíveis. Mas tudo o que ela pensa e escreve em torno dessas refeições, encontros e experiências é delicioso. Só para provar, deixo uma "pitada" de:
S de Sofrimento
S de Sofrimento
...e do apetite misterioso que costuma se manifestar quando nosso coração parece que vai se partir a qualquerr momento e a vida soa por demais triste e vazia. Assim como os outros fenômenos fisiológicos, essa fome sempre tem uma boa razão de ser, se formos objetivos o bastante para reconhece-la.
As pessoas que idealizam a paixão humana preferem pensar que um homem, logo depois de testemunhar a morte de sua bem-amada, fica acima de detalhes mesquinhos como a fome: a dor o tornaria mais nobre; sua mente viveria exclusivamente voltada para a eternidade, para o além. (...)
A verdade é que a maioria dos enlutados anseia por alimentos mais palpáveis do que orações: querem um bife".