Há muito eu namorava este livro. Ganhei-o há poucos dias. Podia ter comprado antes, é claro. Mas assim ele ficou ainda mais gostoso. Meu enamoramento com o livro não era ou não é, propriamente, pela possibilidade de reproduzir suas receitas. Disso eu já desisti, com certeza. Impossível replicar os ingredientes, os passos, os modos. O livro encanta por carregar um Portugal antigo, um Portugal de mesa posta. Para mim, um Portugal cheio de afetos.
Parece que estou ouvindo a voz da Vó ou da Mãe, quando leio trechos como estes, pegados ao acaso: Põe-se ao lume uma panela com dois litros de água. Deixa-se levantar fervura e, nessa altura, introduzem-se as carnes, uma cebola às rodelas, a salsa e o serpão [...] Deita-se o arroz em 7,5 dl de água a ferver temperada com uma pitada de sal e a casca de limão [...] Deixa-se abrir um pouco o arroz [...] Serve-se bem quente, podendo envolver o alguidar numa toalha de linho e acompanha-se com laranjas cortadas às rodelas ou gomos... Um modo de falar estranho e, ao mesmo tempo, tão chegado...
O livro data de 1982 e traz 800 (isto mesmo, oitocentas!!) receitas tradicionais portuguesas. A autora, Maria de Lurdes Modesto, selecionou-as a partir de um conjunto imenso, recolhido ao longo de vinte anos, buscando fazer um levantamento do patrimônio culinário português. Na introdução, confessa que, entre seus propósitos, está colocar-se contra a insidiosa invasão de uma certa 'cozinha internacional', impessoal, soturna e monótona que já alastrou por muitos restaurantes e ameaça entrar-nos casa dentro. A melhor barreira contra essa praga, diz ela, é a cozinha familiar. Um livro de resistência, talvez se possa dizer. Belas fotos ilustram as receitas que vêm organizadas pelas regiões do país e cada uma das regiões introduzida por um texto original de Antonio Manoel Couto Viana.
Senti-me imediatamente atraída pelo primeiro capítulo, Entre o Douro e o Minho, onde nasceu minha mãe. Ali encontrei, encantada, a receita das famosas "Clarinhas de Fão" (veja neste blog o post de 12 de abril de 2012). Complicadíssima! Compreendi, mais uma vez, porque, por tantos e tantos anos, minha mãe e meus tios falavam desses doces com saudade e uma boa dose de mistério.
Retomei muitas outras lembranças. Entre elas, a predileção de minha mãe pelo arroz, que aparece incontáveis vezes no livro, em distintas companhias (arroz de pato, de bacalhau, de polvo, de grelos, de alhos, de lampreia, de ossos de suã), com denominações curiosas (arroz de afogado, arroz de sustância, arroz de frango malandrinho, arroz amarelo e do outro), preparado no forno ou à moda de... tantos lugares, tantas modas... Também encontrei novas pistas para entender as disputas familiares em torno do que seria uma "verdadeira açorda". Cada região prepara-as de um jeito e eu, particularmente, nunca vou esquecer as "açordas de gambas" que provei num boteco de Lisboa, há muitos anos. Enfim, entre sopas e enchidos, bacalhaus e outros peixes, moluscos, mariscos, migas, caldeiradas e doces, muitos doces, se faz o livro e se refaz, outra vez, a saudade.
Lindo post Guacira! Um dos mais bonitos que já li aqui! Um beijo!
ResponderExcluirAdquiri este Livro logo após o seu lançamento, nele aprendi muito e satisfiz minhas curiosidades de culinária. Ainda o consulto com frequência.
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